Teci algumas considerações sobre a importância da avaliação no
processo de ensino-aprendizagem a partir da experiência que tive como
professora, a fim de que possamos refletir sobre o papel da escola e do
professor enquanto agentes transformadores da sociedade.
O
poder transformador da avaliação
Educar é um processo complexo que transcende o simples ato de
ensinar, de transmitir conteúdos. Na escola, cabe ao professor essa honrada,
porém árdua missão.
Não sem atropelos, o processo de ensino-aprendizagem se desenvolve.
E para detectar as falhas desse processo, nada mais coerente que voltar os
olhos para a avaliação. Mas o que é avaliar?
A avaliação é um sistema amplo que não se restringe apenas em
testar ou medir o conhecimento do aluno através da figura de um professor-juiz.
Ser um professor-juiz é pecar no sacerdócio pedagógico, como se o professor
fosse o único com poderes e competência para aprovar ou reprovar alunos e,
consequentemente, o único responsável pelo fracasso do aluno. Porém, mal sabe
ele que se posicionando como tal, nada mais é que um fantoche, um intermediário
escolhido pela sociedade para repassar à escola os valores da classe dominante,
inclusive quando se propõe a avaliar as atividades dos alunos. A avaliação
acaba se tornando um instrumento de controle, feita na base de critérios
unilaterais, restritivos e autoritários, funcionando apenas como mais um
instrumento de perpetuação de valores da classe dominante (ideologia
democrático-burguesa pregando o individualismo, via cisão do homem-trabalhador
e cidadão-, visando seu enfraquecimento político como agente transformador da
realidade). Na concepção dos detentores do poder, quanto maior for o índice de
reprovação, melhor, porque isso vai desestimular o aluno a querer continuar
estudando; em contrapartida, quanto maior for o índice de aprovação de alunos
que, na verdade, não estão aptos, melhor ainda, pois estar-se-á formando um
contingente de eleitores que não sabem pensar criticamente, portanto,
facilmente persuadidos pela retórica dos políticos. Felizmente vem surgindo uma
corrente de educadores que vislumbram na avaliação uma outra função, mais
democrática: a função diagnosticadora, o que permitirá apontar caminhos para
tornar a escola melhor.
Como já foi dito, a avaliação não deve ser utilizada
simplesmente para testar ou medir conhecimento. Ela deve ser vista sob o prisma
de um processo interpretativo que não só prioriza dados quantitativos
(numéricos) como também dados qualitativos. Os critérios de julgamento de que o
professor lança mão, devem ser coerentes com seus objetivos educacionais.
Certamente ficar restrito apenas à nota que o aluno tirou em um exame escrito,
seria camuflar qualquer julgamento sério de valor.
Avaliar não é um ato solitário do professor. Avaliar é um ato de
conjunto. Para isso é necessário que haja um espaço na escola para se
estabelecer um diálogo entre professor, aluno, pais, equipe pedagógica e
administrativa. É desta inter-relação que surge a avaliação como processo
interpretativo capaz de detectar e ainda sanear as verdadeiras falhas do
processo de ensino-aprendizagem. Por isso, o professor, ao planejar suas aulas,
tem de ficar atento à importância dessas pessoas como agentes contribuidores na
formação educacional do aluno, exigindo deles sua parcela de responsabilidade e
atuação nesse processo. A partir dessa visão de conjunto e de
multilateralidade, não se pode mais querer só culpar o professor pelo baixo
rendimento escolar do aluno.
No tocante ao aluno como parte integrante do processo de
ensino-aprendizagem, cabe a ele se autoavaliar. Mas para isso, a ele devem ser
oferecidas condições de fato. O professor deve informar o aluno sobre o que e
como ele está sendo avaliado. Só assim o aluno poderá avaliar o próprio
desempenho e, com base nisso, propor-se metas para superar suas dificuldades.
Daí a importância de se propiciar ao aluno um momento de reflexão, pois, na
medida em que o aluno expõe suas dificuldades para o professor, torna-se mais
fácil o professor estabelecer o liame entre o que ele esperava do aluno e o que
o aluno lhe deu como retorno. Note-se que na consecução dos objetivos
educacionais, havendo falha no comprometimento de qualquer das partes
integrantes do processo de ensino-aprendizagem ou, ao contrário, havendo
profundo entrosamento entre elas, implicará o fracasso ou sucesso da construção
do conhecimento (”lato sensu”) do aluno.
Quando se restringe a avaliação em seu aspecto quantitativo
apenas, questiona-se: nota, para quê? Se o saber não é mensurável, por que
continuar se utilizando deste instrumento de repressão?
O cerne desta questão certamente está numa ideologia assentada
numa escola reprodutora da sociedade, em todas as desigualdades e,
consequentemente, reprodutora de um Estado autoritário que, através do
Legislativo, dita leis (como, por exemplo, a Lei de Diretrizes e Bases)
incongruentes com a real necessidade pedagógico-educacional. O Estado, querendo
ter um controle do nível de ensino, apela para o meio mais simples de ser
registrado e visualizado tal nível, utilizando-se de índices e gráficos
embasados em “notas”. E diante dessa parafernália, os inspetores de ensino
acabam assumindo a função de advogados do diabo, se vendo obrigados pela lei a
cobrar dos professores uma avaliação dos alunos em forma de notas. Assim a nota
se traduz no mais perfeito símbolo-instrumento do autoritarismo, indicando não
quanto ao aluno adquiriu de conhecimentos, porque este não comporta
mensurações, mas sim o quanto o aluno foi capaz de “memorizar” (decorar) o que
o professor ensinou.
Uma outra causa deste apego por uma avaliação através de notas é
a comodidade e facilidade em se estabelecer parâmetros avaliativos numéricos:
cada certo vale “x”, cada errado desconta “y”, e “x” menos “y” será igual ao
que o aluno conseguiu aprender durante um certo período. Será que por essa
equaçãozinha dá para perquirir o quanto de fato um aluno aprendeu? Repetindo
Charles Chaplin: “Não sois máquinas, Homens é que sois”. Uma prova escrita é
insuficiente para se averiguar o rendimento real do aluno. É preciso interpretar
o desempenho do aluno nesta prova escrita, de acordo com as possibilidades
desse aluno e o seu desempenho durante um certo espaço de tempo, como o seu
desempenho em outras atividades que não sejam necessariamente escritas. É
salutar que se tenha uma visão global do desempenho do aluno, inclusive para
possibilitar uma análise interdisciplinar das dificuldades apresentadas pelo
aluno no processo de ensino-aprendizagem.
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Eu, como professora, em momento de integração com meus alunos na Escola Municipal Presidente Costa e Silva de Uberlândia em 1993. |
Há professores tão corrompidos pelo sistema econômico-social
vigente que sentem prazer em serem considerados os “bichos-papões” da escola,
não só pela sua postura autoritária em termo de disciplina, mas também pela sua
postura autoritária em termos de avaliação: “comigo é assim – se conversar na
minha aula, mando pra fora, tiro ponto, e, se o aluno não se sair bem na prova,
eu reprovo mesmo!” Ora, rigidez disciplinar ou rigidez na atribuição de notas
pelo professor não atesta a sua competência: é apenas uma prática autoritária
que, a curto prazo e sem desgastes para o professor (o que já não se pode dizer
o mesmo em relação ao aluno – o mais lesado na prática do autoritarismo na
escola), “resolve” a questão do comportamento e rendimento, ou melhor,
produtividade do aluno (aluno assim visto não como pessoa capaz de se apropriar
do conhecimento e articulá-lo, pois não se lhe oferece meios para isso, mas
como objeto, produto de um conhecimento abstrato, imposto, sem sentido para
ele).
Desmistificando a conjugação saber abstrato e linguagem escrita,
não se deve tirar o mérito da escrita no papel do aprendizado, pelo contrário.
O saber crítico, diferentemente do saber abstrato, só se constrói na medida em
que se busca transformar os alunos em leitores. Enquanto está-se alfabetizando
o aluno, é preciso leiturizá-lo, ou seja, ensiná-lo a transcender a simples
transcrição de letras, palavras, frases, ideias e pensamentos. É preciso
ensiná-lo a pensar, a buscar por si mesmo o conhecimento. Ir ao encontro da
linguagem escrita é estimular operações intelectuais de abstrações e
construções teóricas, indispensável para a reflexão e a manipulação de
conceitos.
Aí entra a questão da produção de textos sobre a realidade do aluno.
É nesse intercâmbio entre o conhecimento abstrato dos textos escritos que lhe
são oferecidos para ler e o fato de lhes ser cobrado a produção de textos sobre
sua própria realidade, via a figura do professor, para pôr em evidência esse
elo fundamental entre texto produzido e texto a produzir, que os alunos
conseguem se desenvolver intelectualmente (exercício da capacidade
intelectiva).
E nesse caminho para a aquisição do conhecimento se encontra a
literatura, pois não sendo ainda um texto produzido, pronto, acabado como um
texto científico, o texto literário dá margem para o leitor (aluno) preencher
esses “vazios” com a sua visão interpretativa do mundo, visão esta baseada em
sua vivência e realidade. Estas frestas, inerentes ao texto literário e a
qualquer produção artística, propicia o desenvolvimento do posicionamento
crítico do aluno face a si próprio e à realidade que o circunda, uma vez que o
aluno se vê todo ou parcialmente refletido na obra literária (ver-se através de
outrem – função especular da literatura). Para motivar o aluno a ler ou a
escrever, é preciso que ele se sinta de certo modo ligado ao acontecimento – o
tenha vivenciado ou tenha adquirido informações a se respeito. A leitura de uma
obra literária propicia o saber crítico, na medida em que não estimula a
resignação e sim, a conscientização.
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Participando de encontro pedagógico para troca de experiências em 19-10-1993 na Escola Municipal Professor Leôncio do Carmo Chaves |
Daí a importância do professor em
salientar o seu objetivo para o aluno, pois é preciso mostrar ao aluno o
sentido das coisas. Se o professor pede ao aluno para fazer uma redação,
deve-se, então, passar a ele a importância da linguagem escrita como fonte de
informação para outras pessoas, e a responsabilidade deste aluno enquanto
produtor de seu próprio texto, como autor de uma obra criada por ele mesmo.
Pedir para fazer uma redação e dizer que só vai valer nota, não estimula em
nada o aluno: “mais uma folha escrita que vai receber uma nota e depois será
guardada ou jogada fora”. Portanto, a educação não pode ser separada do
processo de conscientização, nem a avaliação deve servir de instrumento
cerceador e até mesmo inibidor da aquisição de conhecimentos (construção de um
saber crítico). O desenvolvimento de mecanismos que levam o aluno a saber a
pensar, é que permite a transformação da realidade em que vive. Tem-se aí o
aprender a mudar via estimulação da criatividade e da criticidade.
O verdadeiro objetivo da avaliação é desenvolver uma
aprendizagem significativa, crítica e engajada. O saber, apenas enquanto um
conjunto de ideias abstratas e ainda despejado ao aluno, sob pressão, não é
eficaz. Se, ante da prova este tipo de saber desvinculado do contexto real
vivido é desinteressante, sem sentido e até odioso para o aluno, logo após as provas
é esquecido.
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No cartaz está escrito: "Non scholae sed vitae discimus" (Não aprendemos para a escola, mas para a vida - frase de Sêneca) e "Procure ver a instrução que você adquire na escola como uma preparação para enfrentar os obstáculos da vida".
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Falar que o aluno não gosta de estudar ou que não quer saber de
estudar é uma mentira. Não se pode generalizar. A maioria das crianças querem
estudar sim, só que ao entrarem na escola, se deparam com um sistema seletivo
discriminador que não propicia aos alunos, com alguma deficiência em aprender,
uma avaliação coerente (e, portanto, mais justa) com o seu processo evolutivo
de aprendizado, apesar de mais lento. Todos são avaliados igualmente, sendo desrespeitados,
por conseguinte, as eventuais desigualdades no tocante à capacidade de aprender
e adquirir conhecimentos. Se todo ser humano é dotado de inteligência, logo
todos têm capacidade de aprender, só que uns mais lentamente que os outros. Mas
a escola, enquanto reprodutora do aparelho estatal, ignora que mesmo aquele que
não tem tanta rapidez e facilidade em aprender, é capaz, se oferecido a ele
reais condições de se desenvolver intelectualmente. Daí o grande número de
alunos repetentes nas escolas, que persistem na busca de conhecimentos, mas que
acabam saindo das escolas, ou melhor, sendo expulsos dela, por não se amoldarem
nessa postura autoritária e discriminadora
da escola. E aí a chama do saber se apaga!
Hoje o país vive uma crise educacional, que à primeira vista se
coloca como um reflexo da crise econômico-política que a sociedade enfrenta;
pois há que se ficar alerta a uma outra crise, porém interna, que é a do choque
entre a herança de uma escola tradicional com métodos autoritários (figura do
professor autoritário, soberano) e a escola nova com métodos baseados
primordialmente na total liberdade do aluno (autoritarismo versus anarquismo – eis o perigo dos extremos!) Mas, por outro
lado, é no conflito que se encontra a democracia e não no consenso. Esta crise
educacional se revela de um certo modo positiva, na medida em que obriga os
educadores a refletir, repensar a avaliação enquanto instrumento de controle e
repressão e, consequentemente, assumir um posicionamento crítico em relação ao
sistema de avaliação vigente.
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Escola Estadual de Uberlândia - uma das mais
importantes escolas da cidade de Uberlândia. Minha avó estudou aí e eu também!!! |
Avaliar não é um ato unilateral, solitário, nem tampouco
restrito ao interior da sala de aula. É preciso de um intercâmbio entre todas
as pessoas diretamente ou indiretamente envolvidas no processo educacional
(pais, alunos, professores, orientadores, supervisores, diretores, inspetores
de ensino, secretário de educação até o ministro da educação). Se se houvesse
uma política mais atrelada à realidade das escolas e suas reais necessidades, sua
clientela poderia sobreviver à crise. Repensar o sistema de avaliação em todas
as esferas educacionais é preciso, só assim será propiciado ao aluno
competência, criticidade e criatividade, através de uma escola com uma nova
postura – agente veiculador de um saber crítico, portanto atrelado a uma práxis
social.
Vamos parar, pensar, repensar e refletir sobre isso?